Um resgate às origens do MaRIas: memória de uma das criadoras
- maRIas Pós IRI-USP
- 5 de jul.
- 8 min de leitura
Atualizado: 7 de jul.

Entrevistadoras: Ana Lívia Ayres Cardoso e Ana Luiza Rocha Gomide
Entrevistada: Kelly Komatsu Agopyan (co-fundadora do grupo MaRIas IRI-USP, atualmente MaRIas-USP)
Qual foi o contexto da criação do grupo?
Foi no início de 2017. Eu, juntamente com algumas alunas da pós-graduação do IRI-USP, começamos a conversar e manifestamos sentir falta de ter um espaço de acolhida e de formação nas pautas de gênero dentro do instituto, mesmo as alunas que não pesquisavam gênero (de todas que estavam na primeira reunião, só uma pesquisava gênero). Resolvemos, então, fazer uma primeira reunião, que ocorreu em maio de 2017, para ver quais seriam as demandas, o que precisava ter dentro do instituto, e chegamos à conclusão de que seria interessante consolidar um grupo que fosse, inicialmente, grupos de estudos para ler bibliografias bem introdutórias para se aproximar do tema.
A entrevistada resgatou seus escritos das primeiras reuniões do grupo. Por meio desses escritos, Kelly foi relembrando alguns detalhes da trajetória inicial do grupo:
O primeiro texto que lemos foi o Feminismo e Política, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel. Em cada encontro, líamos alguns capítulos da obra até lê-la por inteiro.
Em agosto daquele ano, definimos o nome MaRIas e a peculiaridade de sua grafia, com o RI maiúsculo no meio da palavra, remetendo à nossa área de Relações Internacionais. Pouco tempo depois, definimos que o nome completo do grupo seria MaRIas - Grupo de Estudos em Gênero e RI da pós-graduação do IRI-USP.
Também decidimos que a cor do logo seria “açaí” e que criaríamos uma página das MaRIas no Facebook.
Nesse início do grupo, também discutimos como nos articular com outras mulheres no instituto. Queríamos tentar fazer uma reunião com as professoras do IRI e também nos aproximar do coletivo feminista da graduação. Essa aproximação infelizmente não aconteceu.
O grupo surgiu, então, nessa tentativa de ser um espaço formativo para as alunas. Já na primeira reunião, começamos a trazer os desabafos, as dificuldades de ser mulher na academia, as situações desagradáveis que passamos (por exemplo: homens interrompendo nossa fala, homens explicando coisas como se não soubéssemos), da falta de mulheres sendo chamadas para palestrar nos seminários da pós-graduação do IRI (chegamos a listar quantas mulheres haviam sido chamadas entre 2014 e 2018 e era um número muito inferior ao de homens — descobrimos que 77,6% dos seminários obrigatórios do período mapeado tiveram apenas homens palestrantes). A ideia era produzir um documento para a diretoria para chamar atenção para o que estava ocorrendo, mas realmente não me lembro se chegamos a efetivamente fazer esse contato.
Tivemos várias ideias no decorrer dos primeiros meses, mas a que conseguimos concretizar, de fato, foi o grupo de estudos. No primeiro ano, lemos mais sobre as ondas do feminismo e, no ano seguinte, fomos para as vertentes do feminismo, por exemplo: feminismo marxista, feminismo africano. Começamos a tentar sair da “caixinha” do feminismo liberal e tentar entender outras dimensões.
Em 2017, as MaRIas foram convidadas por um professor para dar uma aula na pós-graduação sobre as perspectivas de gênero no Bolsa Família.
Ainda em dezembro de 2017, as MaRIas estavam presentes na apresentação do IRI para ingressantes da pós-graduação. A gente já estava se instituindo como um grupo, ainda que não fosse institucionalizado de fato. Ficamos vários anos sem estar institucionalizadas.
O grupo se institucionalizou na pandemia, pois sentimos a necessidade de ter recursos e, para isso, precisávamos de vínculo institucional. Foi quando convidamos a Janina para ser a nossa coordenadora.
Paradoxalmente, o grupo começa a ganhar visibilidade na pandemia, pois foi quando começamos a fazer os encontros online. Antes da pandemia, eles eram realizados na sala da pós-graduação ou na biblioteca do IRI, mas sempre presenciais, então só ia quem estava no programa.
Quem estava envolvida nesse processo de criação?
Em torno de 10 mulheres da pós-graduação do IRI-USP. A grande maioria eram mestrandas, mas tinham algumas doutorandas.
Nos conte mais sobre os motivos que impulsionam a criação do grupo
Em resumo:
Desafio de ser mulher na academia;
Desafio de ser mulher no campo de Relações Internacionais (é um campo conservador, mulheres pesquisadoras e autoras ainda não tinham muito espaço em questão de artigos e publicações);
Ter um espaço de formação e acolhimento entre as mulheres do IRI.
O grupo surgiu no âmbito da pós-graduação ou da graduação? Ele se mantém assim até os dias atuais? Quando abriram para a graduação?
Desde o começo, já havia o intuito de se aproximar do coletivo feminista da graduação, mas entendíamos que o coletivo era mais para fins de ativismo, de fazer pressão para pautas feministas, enquanto as MaRIas eram mais para formação e acolhimento das pós-graduandas, então nunca conseguimos muito nos aproximar do grupo da graduação. Porém, na pandemia, quando tudo foi para o virtual e começamos a ganhar mais visibilidade, percebemos o interesse de pessoas da graduação na temática de gênero. No primeiro Seminário MaRIas, já permitimos a participação da graduação e percebemos um grande número de inscrições de graduandas. Percebemos, então, que havia um vazio em congressos que permitissem que pesquisadoras mais jovens inscrevessem suas pesquisas, isso no ano de 2020. Então, no ano seguinte, fizemos um processo seletivo no qual permitimos a entrada de pessoas da graduação também. Logo no primeiro processo seletivo, já expandimos para fora do IRI, para fora da USP e para fora de São Paulo.
Não tínhamos expectativas com a pandemia, o nosso crescimento foi acontecendo inesperadamente. Criamos a nossa conta no Instagram nessa época.
Comente sobre algumas mudanças que o grupo sofreu ao longo dos anos
Em resumo:
As atividades: antes eram somente grupo de estudos, depois fomos para o virtual e depois abrimos outras frentes: comunicação, realização de seminários, área de pesquisa;
Edital de fomento da pró-reitoria de pesquisa da USP, em 2021: foi a única vez que conseguimos bolsas para algumas das integrantes e foi por meio deste edital que realizamos a pesquisa com o Governo do Estado de SP;
Incorporação de pesquisadoras da graduação;
O grupo ficou mais diverso e representativo, com a entrada de pessoas fora do eixo sudeste.
As mudanças que ocorreram foram para aumentar o escopo do grupo e expandir o que já fazíamos e o impacto das nossas atividades.
O grupo é fechado? A comunidade externa pode participar dos encontros?
No começo, acabava ficando restrito a quem era do IRI, pela dificuldade de acesso à cidade universitária e horários de difícil acesso para quem não é pós-graduanda/o com dedicação exclusiva. Depois que passamos para o online, agora contamos com uma maior participação do público externo. Até hoje, os grupos de estudos são abertos a quem quiser participar, mas o intuito sempre foi a formação das próprias integrantes.
Quais são os impactos perceptíveis do grupo na comunidade acadêmica?
Nós viramos referência. Tem uma questão da longevidade do grupo, da permanência; porque muitos dos grupos que existiam na época da criação da AT de Gênero na ABRI estão desmobilizados hoje em dia. São poucos os grupos que existem há oito anos sem estar 100% institucionalizados e sem ter financiamento permanente, como nós. Quando falam de grupo de pesquisa de gênero e RI sempre pensam nas MaRIas. Esse é o maior impacto, juntamente com o nosso Seminário. Mesmo não sendo um evento organizado por uma instituição de ensino, em todas as edições conseguimos um número muito grande de inscrições. Começamos a ocupar um espaço importante nesse sentido para pesquisa no tema de gênero e RI que consegue ser diverso e abranger pessoas de todas as regiões, por ser híbrido (os minicursos e apresentações de trabalho ocorrem sempre de maneira virtual, porém algumas palestras são presenciais, mas possuem transmissão ao vivo). Portanto, a nossa história e o Seminário são marcos para o impacto que trazemos, porque começamos a ganhar legitimidade.
Nos conte mais sobre as produções e atividades no âmbito coletivo do grupo.
Com a virada de chave na pandemia, começamos a dar mais centralidade para essa questão da produção acadêmica. Na pandemia, escrevemos dois artigos para o nosso site e um artigo para o portal Outras Palavras. Sabemos que é muito difícil fazer produção acadêmica em um trabalho que é voluntário, mas tentamos (e conseguimos) fazer isso. Outros exemplos são as duas edições dos Ensaios Acadêmicos, os quais são produtos gerados das discussões dos grupos de estudo (e funcionam também como um motivador para as voluntárias se engajarem nos grupos de estudos, pois gera uma produção ao final). Além disso, em 2021/2022, fizemos o Mapeamento das Políticas Públicas Paulistas no Contexto do ODS 5, que foi uma parceria com o Laboratório de Análises Internacionais Bertha Lutz (LAI-USP) e o Governo do Estado de São Paulo. Foi um esforço coletivo de 13 pesquisadoras, de diferentes níveis de formação acadêmica, que fizeram essa articulação (durante mais de um ano, com várias reuniões, entrevistas a secretarias estaduais) com o governo em algo inovador: uma produção acadêmica envolvendo políticas públicas e envolvendo graduação e pós-graduação.
E quais os impactos que o grupo gerou na sua vida?
Primeiramente, fiz amigas. O grupo me aproximou de pessoas que, muito provavelmente, eu não teria me aproximado se o MaRIas não existisse. Além disso, o grupo abriu a minha perspectiva em relação ao meu objeto de estudos; eu sempre estudei Direitos Humanos, mas não pesquisava gênero diretamente, até entrar no grupo. Foi por causa das MaRIas que comecei a direcionar minha pesquisa à questão de gênero. Isso se deu muito por causa das questões discutidas no grupo. No nível pessoal, desenvolvi habilidades de coordenar pessoas de idades diferentes, de lugares diferentes, de formações diferentes que estavam ali por vontade de fazer parte, afinal somos um grupo voluntário. Foi no MaRIas que entendi o que é estar em um grupo de mulheres pensando coletivamente. Em resumo, foi um crescimento nessa perspectiva de gestão de um coletivo de pesquisadoras. Tanto é que até hoje, mesmo não fazendo mais parte ativamente do grupo, me chamam de “Kelly das MaRIas”.
Seu grupo participou ativamente da construção da Área Temática (AT) de gênero da ABRI?
As MaRIas não estavam desde o começo, entramos um pouco depois. O grupo MulheRIs era quem estava desde o começo e quem mobilizou essa construção da AT. As MaRIas entraram nessa discussão em 2020, mas o grupo MulheRIs já tinha feito toda a articulação política. O que ficou claro é que essa AT não teria existido se não fosse o esforço dessas docentes pesquisadoras do campo das RI, foi um trabalho de ativismo delas. Porque, a princípio, pode parecer banal, “apenas” a criação de uma AT, mas não é, pois tem pessoas conservadoras no nosso campo (que defendem que temáticas como a de gênero não devem ser discutidas em RI), então foi uma disputa política muito importante puxada por mulheres. Era uma gestão da ABRI que permitia que esse tema fosse pautado, então as professoras aproveitaram essa janela de oportunidade, chamaram os grupos de gênero para legitimar ainda mais essa luta. Eu me recordo de ler o documento de criação da AT, chegamos a assinar como MaRIas, mas temos que dar os créditos a essas professoras que puxaram a luta desde o começo. O que mostra que sempre temos que estar na luta, muitas conquistas relacionadas a gênero ainda não estão dadas para a gente.
Utilizam redes sociais para divulgar os trabalhos que realizam? Se sim, poderia compartilhar?
A primeira rede social do grupo foi o Facebook, criado em 2017, mas atualmente está inativo. Em 2020, criamos a nossa conta no Instagram e hoje em dia é o nosso principal meio de comunicação com o público externo; atualmente, mais de 2 mil pessoas nos seguem. A nossa conta no LinkedIn foi feita posteriormente ao Instagram, assim como o nosso site, o qual foi criado muito por causa do Seminário. A ideia era ter um lugar onde as pessoas pudessem encontrar informações facilmente a respeito dos nossos eventos. Até hoje, o site é alimentado com os eventos. Todavia, além disso, ele atua como uma espécie de repositório para nossas publicações: as apostilas desenvolvidas para os minicursos, os anais dos Seminários, nossos artigos feitos como grupo, os Ensaios Acadêmicos, resenhas, entrevistas e demais trabalhos acadêmicos são todos publicados no nosso site. Ele conta nossa história.



Kellynha, sua trajetória é, para nós, fonte constante de inspiração. Seremos eternamente gratas por cada partilha e construção neste longo caminho que é os estudos de gênero.